Personalidade é fundamental na saúde e no adoecer, mental e físico. Envolve aspetos biológicos presentes e determinantes ao longo dos primeiros anos de vida, onde se incluem os genéticos, os neurobiológicos e os de vinculação precoce. Para a estruturação da personalidade contribui a nutrição relacional, recebida inicialmente das figuras cuidadoras e mais tarde de outras figuras significativas, sedimentada ao longo dos anos. Ter sido cuidado, compreendido, amado e reconhecido contribuiu de forma decisiva para o desenvolvimento harmonioso da personalidade.
As formas segundo as quais nos tentamos ajustar às exigências da vida e reduzir a ansiedade, lidar com os lutos e ameaças à auto-estima são aspetos importantes da personalidade.
Epidemiologia
As perturbações de personalidade são muito prevalentes. Diversos estudos epidemiológicos conduzidos na Europa e nos EUA indicam prevalências na população em geral variando entre 2-18%; com média superior a 10%. A prevalência média de cada perturbação de personalidade situa-se entre 1 e 2%.
Uma das mais prevalentes é Perturbação Estado-Limite (Borderline).
Ao nível de fatores genéticos, parece que a Perturbação Borderline da Personalidade é 5 vezes mais frequente em indivíduos que apresentam familiares de primeiro grau com a mesma perturbação.
Estima-se que a Perturbação Borderline da Personalidade esteja presente em cerca de 2% a 6% da população mundial, tendo sido predominantemente diagnosticada no sexo feminino (cerca de 75% nas mulheres e 25% nos homens).
Perturbação Estado – Limite (Borderline) da Personalidade (“fronteira entre a neurose e a psicose”)
Consideradas classicamente na “fronteira entre neurose e psicose”, são pessoas com extraordinária instabilidade do comportamento, dos afetos, do humor e da autoimagem. Apresentam impulsividade, automutilações recorrentes (demonstração de raiva, chamada de atenção, procura de substituição de dor emocional) sentimentos promíscuos, medo do abandono – real ou temido). Utilizam mecanismos de defesa imaturos com ciclos de clivagem/idealização/desvalorização/identificação projetiva. A história de abuso sexual/físico é comum, com significado etiológico presumido. Podem ter episódios micropsicóticos.
Existindo comportamentos autolesivos ou tentativas de suicídio, poderão resultar incapacidades físicas graves.
São pessoas que podem rapidamente oscilar entre a alegria, a calma, ou a irritabilidade e a tristeza. Neste ponto, por vezes, tende a predominar alguma confusão entre a Personalidade Borderline e Perturbação Bipolar. Contudo, a primeira refere-se a um distúrbio de personalidade, remetendo para um padrão de pensamento e comportamento rígidos e desajustados, com alterações emocionais intensas e rápidas (por vezes, a ocorrer num só dia); já a Perturbação Bipolar é uma perturbação do humor, caracterizada por uma alternância de episódios de euforia (designados de mania), combinados com episódios depressivos, mas de maior duração (isto é, podem durar semanas ou meses). Todavia, os dois distúrbios podem coexistir, uma vez existirem comorbilidades associadas à Perturbação Borderline da Personalidade.
Diagnóstico clínico da Perturbação Borderline da Personalidade
Obedece aos critérios de diagnóstico definidos pela quinta edição do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais – DSM-V.
Critérios de diagnóstico (APA, 2013):
Padrão global de instabilidade no relacionamento interpessoal, na autoimagem e afetos, e impulsividade marcada, começando no início da idade adulta e presente numa variedade de contextos, como indicado por 5 ou mais dos seguintes critérios:
1. Esforços frenéticos para evitar o abandono, real ou imaginado;
2. Um padrão de relações interpessoais intensas e instáveis, caracterizado por uma alternância entre extremos de idealização e desvalorização;
3. Perturbação de identidade: autoimagem ou sentimento de si próprio marcados e persistentemente instáveis;
4. Impulsividade em pelo menos duas áreas que são potencialmente autolesivas (por exemplo, gastos, sexo, abuso de substâncias, condução imprudente, ingestão alimentar compulsiva);
5. Comportamentos, gestos ou ameaças recorrentes de suicídio ou comportamento automutilante;
6. Instabilidade afetiva devido a reatividade de humor marcada (por exemplo, episódios intensos de disforia, irritabilidade ou ansiedade, em regra durando poucas horas e raramente mais do que alguns dias);
7. Sentimento crónico de vazio;
8. Raiva intensa ou inapropriada, ou dificuldades em controlar a raiva (por exemplo, demostrações frequentemente de temperamento, raiva constante, lutas físicas recorrentes);
9. Ideação paranoide transitória reativa ao stresse ou sintomas dissociativos graves.
A forma de sentir e pensar de uma pessoa com Perturbação Borderline da Personalidade é, assim, muitas vezes classificada de “tudo ou nada”, “preto ou branco”. Como tal, tendem a ver o mundo e as relações em polos de idealização e desvalorização: rapidamente a situação passa de fantástica a terrível, as pessoas de extraordinárias a malvadas. Em situações mais extremas e de grande stresse, podem surgir sintomas dissociativos graves, como delírios e alucinações auditivas e visuais, embora transitórios e de curta duração (distinguindo-se, assim, de um quadro de esquizofrenia).
Pessoas com Perturbação Borderline da Personalidade podem revelar um padrão de “autossabotagem”, sobretudo quando estão perto de alcançar um objetivo – por exemplo, abandonar um percurso académico imediatamente antes da sua graduação, ou terminar uma relação positiva quando a mesma se pode revelar duradoura. A existência de um padrão instável na esfera interpessoal pode proporcionar que estes indivíduos sejam despedidos recorrentemente nos seus contextos laborais, assim como revelar uma sucessão de términos de relações e/ou divórcios.
Comorbilidades mais comuns
As perturbações mais comuns com a Perturbação Borderline da Personalidade incluem a depressão ou bipolar, perturbação de ansiedade, uso de substâncias e perturbações alimentares (particularmente a bulimia nervosa).
Possível intervenção
A intervenção clínica ao nível da Perturbação Borderline da Personalidade é semelhante para a grande maioria das diferentes perturbações de personalidade. A psicoterapia revela-se a abordagem mais eficaz, permitindo uma exploração e revisão da história desenvolvimental da pessoa, potenciando a compreensão de padrões de funcionamento pessoal e relacional.
Em algumas situações, a combinação com uma terapêutica farmacológica poderá fazer sentido, sobretudo na estabilização de sintomas comórbidos e/ou perante comportamentos autolesivos.
Através de uma relação psicoterapêutica empática e colaborativa, procura-se também desenvolver estratégias de regulação emocional e do controlo de impulsos, assim como o desenvolvimento de relações interpessoais mais adaptativas. Procurar ajuda psicoterapêutica pode prevenir outras complicações e sofrimento.
Revisão: Fátima Nunes – março 2023